17/01/2023 às 19h25min - Atualizada em 18/01/2023 às 00h01min

O promotor com a cabeça a prêmio pela mais poderosa máfia da Itália

Nicola Gratteri, o alvo mais conhecido da máfia italiana, aprendeu a viver em perigo constante.

G1 Mundo
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Nicola Gratteri, o alvo mais conhecido da máfia italiana, aprendeu a viver em perigo constante. O promotor com a cabeça a prêmio pela mais poderosa máfia da Itália
BBC
O principal alvo da máfia italiana só nos conta onde podemos encontrá-lo 20 minutos antes da entrevista.
O procurador Nicola Gratteri, que lidera a luta do país contra o crime organizado, aprendeu a viver em perigo constante. Se ele avisasse com muita antecedência, ficaria exposto a riscos.
Somos instruídos a esperar por ele fora do tribunal, na região sul da Calábria, na Itália. Ele está na região para supervisionar o maior julgamento do tipo desde os anos 1980. Mais de 330 suspeitos depuseram e 70 deles já foram condenados.
Gratteri surge repentinamente, rodeado por cinco carros de polícia que compõem a sua escolta. Nós agradecemos a ele, algumas vezes, pela sua disposição de nos receber e falar conosco.
"Pare de me agradecer e vamos logo com isso", apressa-se ele. "Não há nada que eu odeie mais do que perder tempo."
Gratteri está jurado de morte pela máfia mais poderosa da Itália, a 'Ndrangheta. Ele dedicou toda a sua carreira a combater o grupo e não é muito afeito a cortesias.
Ele decide nos levar de carro até o seu escritório, a 40 minutos de distância. Lá, ele estará mais à vontade para falar. Entramos no seu carro à prova de balas e assim começa o que talvez seja o deslocamento mais perigoso da Itália.
"Vivo com este nível de segurança desde 1989, quando atiraram na casa da minha noiva e alguém telefonou para ela durante a noite para dizer que ela estava se casando com um homem morto", ele conta. "Tudo aumentou até atingir este nível de controle sufocante."
E não há alternativa, se nos lembrarmos do que aconteceu 30 anos atrás. Em 1992, o procurador Giovanni Falcone foi atingido por uma bomba instalada sob o piso de uma rodovia perto de Palermo pela máfia siciliana Cosa Nostra.
Falcone, sua esposa e três policiais morreram na ocasião, enquanto seu colega Paolo Borsellino foi assassinado por um carro-bomba dois meses depois.
Os crimes — e as dolorosas imagens da rodovia semidestruída no local do ataque a Falcone — ainda são considerados pelos italianos um momento de definição na sua história moderna.
Os magistrados são respeitados pelo seu heroísmo e a brutalidade dos assassinatos ainda é um forte símbolo da capacidade da máfia de praticar o terror.
Com os olhos na estrada, Gratteri conta que se lembra com frequência dos juízes assassinados — e de como eles também eram alvos em movimento, enquanto atravessavam outra parte do país dominada pelo crime organizado.
"Converso frequentemente com a morte porque você precisa racionalizar o medo para seguir em frente", afirma ele. "Caso contrário, não poderia fazer este trabalho."
Aceleramos para atravessar o exuberante e acidentado pé da bota italiana, bastião da 'Ndrangheta desde as suas origens, no século 19.
O sindicato do crime é centralizado em clãs familiares, chamados de 'ndrine. Esses clãs controlavam tradicionalmente as aldeias no topo das montanhas calabresas. Os laços sanguíneos forjaram sua lealdade duradoura.
As máfias Cosa Nostra, da Sicília, e Camorra, da região de Nápoles, são mais conhecidas internacionalmente. Parte dessa fama se deve aos dramáticos ataques com bombas, mas ambas foram enfraquecidas pela implacável perseguição da polícia.
Por isso, a 'Ndrangheta cresceu no seu lugar e, hoje, é a máfia mais poderosa da Itália. Seus ramos estão em todo o mundo, da América do Sul até a Austrália, com ganhos anuais estimados de cerca de US$ 60 bilhões (cerca de R$ 306 bilhões).
A grande sala montada para o julgamento costumava ser um call center
BBC
Sua moeda é a cocaína. O grupo domina o mercado global e acredita-se que ele controle atualmente até 80% do comércio da droga na Europa.
A maior parte da cocaína passa pelo porto de contêineres mais movimentado da Itália, o enorme Gioia Tauro, no sul da Calábria.
Dali, uma parte da droga segue para o mercado italiano e o restante passa pelo porto em direção ao leste, até os Bálcãs e o mar Negro. Também já foi interceptado equipamento militar destinado à Rússia.
Nós observamos enquanto um contêiner recém-chegado do Equador trazendo bananas é inspecionado, primeiro por cães farejadores e, em seguida, por funcionários da Guardia di Finanza, o esquadrão contra crimes financeiros, que abre algumas caixas para examinar os cachos de frutas.
Este embarque está limpo, mas nem sempre é assim. A quantidade de cocaína apreendida no porto quase triplicou nos dois últimos anos.
Uma recente operação policial concentrou-se em trabalhadores portuários suspeitos de envolvimento em uma enorme rede de contrabando da 'Ndrangheta. Foram 35 presos e 7 toneladas de cocaína apreendidas, com valor de varejo de US$ 1,4 bilhão (cerca de R$ 7,15 bilhões).
Recebemos uma rara autorização para observar o volume dessas drogas, guardadas em uma cela trancada. São centenas de pacotes firmemente embalados que são fotografados e analisados em seguida.
Nicola Gratteri está jurado de morte pela máfia
BBC
Um pouco do pó branco é retirado e colocado em um tubo contendo uma solução líquida. O tubo é inserido em kits de teste que parecem coisa da pandemia — mas detectando crime desta vez, não covid.
Depois de alguns segundos, surge uma linha vermelha. O resultado é positivo, com 98% de pureza.
A cocaína apreendida pela Guarda di Finanza no porto de Gioia Tauro nos últimos dois anos representa mais da metade de todo o volume das últimas duas décadas.
O contrabando da 'Ndrangheta pode estar aumentando, mas a tecnologia policial também, com forças colaborando além das fronteiras.
Uma enorme operação internacional em 2019, conduzida por policiais da Itália, Alemanha, Suíça e Bulgária, levou à prisão de 335 suspeitos, incluindo advogados, contadores e um ex-parlamentar.
Todos faziam parte ou mantinham relações com a família Mancuso, um dos cerca de 150 clãs implacáveis que compõem a 'Ndrangheta.
Foi o maior ataque ao grupo na sua história e, como resultado, teve início o chamado "megajulgamento" da Calábria, dois anos atrás.
Uma central telefônica nos arredores da cidade de Lamezia Terme foi transformada em um salão com espaço suficiente para receber cerca de 600 advogados e 900 testemunhas. Muitos testemunharam por chamada de vídeo.
As acusações incluíram assassinato, extorsão e tráfico de drogas. Mais de 70 pessoas já foram condenadas.
Observando a enorme sala, com celas instaladas em um dos lados, a sensação é de que o simbolismo visual aqui é importante — um ambiente projetado para mostrar aos italianos que o Estado está combatendo a 'Ndrangheta e que os mafiosos não são inatingíveis.
Este é o maior julgamento da carreira de Nicola Gratteri.
Enquanto somos levados rapidamente para o seu escritório, com seus guarda-costas sempre um passo atrás dele, o procurador conta que as prisões eliminaram 70% do controle da 'Ndrangheta na província de Vibo Valentia, um dos seus redutos.
"Se todos eles forem condenados, significará espaço para a comunidade respirar", afirma ele.
Mas os Mancuso são apenas uma das famílias da 'Ndrangheta. Embora sejam poderosos, este não é o início do seu fim. "Assim que terminar este julgamento, vou seguir para o próximo", afirma Gratteri.
Ele dedicou — e até sacrificou — sua vida em prol desta luta. "Não tenho vida", ele conta.
"Para ir a um café, preciso parar e discutir com meus guarda-costas. Alguém entra para pagar e depois entramos e tomamos o café."
"Precisamos parar para decidir onde usar o banheiro", ele conta. "Não vou ao cinema, nem ao restaurante, há 25 anos. Meu barbeiro vem ao escritório quando preciso cortar o cabelo. Quase não vejo minha família. Mas, na minha cabeça, sou um homem livre."
Pergunto se vale a pena. Ele suspira profundamente.
"Vale a pena se você acreditar nisso — e eu acredito", responde ele. "Acredito que estou fazendo algo importante. Existem milhares de pessoas que acreditam em mim e para quem sou o último recurso, a última esperança de mudança. Não posso desapontá-los."
Túmulo de Matteo, filho de Francesco e Sara Scarpulla, em Limbadi (Itália).
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Sara Scarpulla e seu marido Francesco estão entre essas pessoas. Em 2018, eles suportaram o inimaginável, enterrando seu único filho, Matteo, morto por uma bomba instalada sob o chassi do seu carro.
Acredita-se que os assassinos pertencessem aos Mancuso — o clã da 'Ndrangheta agora em julgamento — que haviam perseguido Matteo e Francesco depois de uma prolongada discussão sobre os limites entre suas terras.
No cemitério da cidade de Limbadi, a poucos metros do túmulo de Matteo, fica o mausoléu da família Mancuso. A vítima e os parentes dos seus assassinos repousam quase lado a lado em uma região mergulhada em disputas sanguinárias.
Na sala de estar do casal, com as paredes decoradas com fotografias gigantes de Matteo, Sara conta que ele era "a alegria da vida — educado e extraordinário. Tenho orgulho de ter sido a mãe de Matteo e de tê-lo tido como filho."
Sara e Francesco, pais de uma vítima da máfia
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Sentado ao lado dela, Francesco, que estava no carro com Matteo na ocasião, bate os dedos distraidamente sobre a mesa, sem poder fazer nada enquanto vê sua esposa não conseguir mais reter as lágrimas.
"Nós não temos mais vida", afirma ela. "Às vezes, eu pergunto a Deus: 'onde você estava quando Matteo estava morrendo?' E a namorada de Matteo me responde: 'ele estava ali, levando Matteo com ele'."
Sara conta que Limbadi é dominada pela 'Ndrangheta. Eles controlam as empresas locais, mantêm os mecanismos de poder e inspiram o medo com seu comportamento violento.
Ela relembra que, quando sua disputa de terra com eles aumentou, eles matavam os animais da família e atiravam galinhas degoladas sobre o teto da sua casa.
"Enquanto a mentalidade das pessoas não mudar, as coisas nunca mudarão", acrescenta ela.
"Precisamos plantar a semente da mudança, como fazem o procurador Gratteri e todos os procuradores como ele. Enquanto não seguirmos os passos daquelas pessoas, estaremos presos aqui com a 'Ndrangheta no poder."
Subitamente, surge um olhar desafiador. "Preciso lutar, ir para a linha de frente e gritar nas ruas desta cidade: 'a 'Ndrangheta precisa sair daqui!' Esta não é a cidade da 'Ndrangheta. É a cidade de Matteo."
Mas sair das garras sufocantes da 'Ndrangheta exigirá mais que uma mudança de mentalidade. Será preciso que os mafiosos se voltem contra a máfia, quebrando a omertà, o código de silêncio.
Os delatores em um grupo baseado em laços sanguíneos, em que a deslealdade significa trair sua própria família, são poucos e preciosos.
Nós encontramos um: Luigi Bonaventura está testemunhando no julgamento dos Mancuso. Ele concorda em nos receber no norte da Itália, não muito longe do local onde ele mora, mas sem revelar exatamente onde fica.
Seu testemunho fornece uma rara visão dos trabalhos internos dos mafiosos e como funciona sua doutrinação.
Bonaventura começou a colaborar com a polícia 16 anos atrás. Ele conta que o objetivo era dar aos seus filhos a liberdade que ele nunca teve. Desde então, sua segurança está a cargo do programa de proteção a testemunhas.
Ele usa seu próprio nome, mas cobre seu rosto com um capuz, para não ser reconhecido pelas pessoas que delatou.
"A 'Ndrangheta é uma tribo", ele conta. "Se você nascer naquela família enquanto ela estiver em guerra, você não pode fazer nada, a não ser crescer sendo incitado ao ódio e à violência. As palavras repetidas eram sempre as mesmas: 'matar, matar, matar'."
Bonaventura se lembra de ter sido criado como "criança soldado". Ele recebeu uma pistola com 10 anos de idade e brincava com armas de verdade como se fossem brinquedos.
Treinado para ser o que ele chama de "matador adormecido", Bonaventura foi convocado para lutar aos 19 anos de idade, quando sua família entrou em guerra com outra.
"Eu me envolvi em cinco assassinatos", ele conta. "Três eu presenciei e dois eu realizei."
Luigi Bonaventura disfarçado para sua própria proteção
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Bonaventura afirma que sua colaboração levou à prisão ou condenação de mais de 500 suspeitos da 'Ndrangheta. Eu pergunto qual impacto ele acredita que o megajulgamento trará para a máfia.
"A 'Ndrangheta não tem apenas um chefe, não é a Cosa Nostra da Sicília, com um chefe dos chefes que, se cair, traz tudo abaixo com ele", responde Bonaventura.
"A 'Ndrangheta é um monstro, uma hidra de múltiplas cabeças", prossegue ele. "Se uma for cortada, existem muitas outras. É questão de tempo, talvez 10 anos, mas o clã Mancuso irá se reagrupar e voltar mais forte do que nunca."
É uma previsão pessimista. Mas, na Calábria, as associações antimáfia estão trabalhando para educar a próxima geração e garantir que os jovens italianos se afastem das garras do crime organizado.
Os tentáculos da máfia são tão longos, infiltrados tão profundamente na sociedade italiana, que até Nicola Gratteri, a principal autoridade sobre a 'Ndrangheta do país, afirma que a Itália nunca ficará livre do seu domínio.
"Ela pode ser reduzida em grande parte, mas seria necessária uma revolução para combatê-la", afirma ele. "Precisamos de um sistema ainda mais forte — e, acima de tudo, precisamos investir em educação e cultura."
Gratteri afirma que isso fez a diferença para ele quando criança, enquanto muitos de seus amigos de infância eram ludibriados pela 'Ndrangheta.
"Se eu tivesse nascido a 100 metros de distância, hoje seria um chefe da máfia", ele conta.
"Mas tive sorte porque nasci em uma família de pessoas honestas. Muitos dos meus colegas de escola foram mortos com tiros de espingarda de cano curto. Outros, fiz com que fossem presos por porte de armas ou drogas."
Ele se lembra de ter se deslocado até Miami, nos Estados Unidos, quando um antigo amigo de escola foi preso com 800 kg de cocaína no seu navio.
"Ele me disse que havia arruinado sua vida", ele conta. "Eu disse para ele: 'veja, você ainda pode mudar as coisas, existe uma chance de cooperar'. Mas ele se recusou."
Nesta batalha pela alma italiana, pergunto qual lado está ganhando: se a máfia ou o Estado. Gratteri sorri e responde: "é um empate. Para ganhar, precisamos mudar as regras do jogo, com um sistema prisional suficientemente forte para desencorajar os criminosos."
Herói de muitos e inimigo de alguns, Gratteri parece uma figura um tanto isolada, sem medo de entrar em brigas e desvendar tudo, ao máximo possível. Será que, com 64 anos de idade, ele tem algum arrependimento?
"Não", responde ele. "Talvez eu pudesse ter feito mais — até o que fosse humanamente impossível. Tenho o melhor trabalho do mundo e vou continuar enquanto puder."
Gratteri faz uma pausa, organizando seus pensamentos.
"Tudo na vida tem um preço, não é? Para ter tido uma vida normal, eu precisaria ter ido mais devagar. Talvez eu precisasse ter trabalhado menos. Mas eu teria me sentido um covarde. E viver como um covarde não faz sentido para mim", afirma ele.
Com nosso tempo quase no final, Gratteri verifica o telefone. "Guarde tudo rápido e leve suas bolsas", instrui ele. "Preciso trancar aqui e sair."
Com um rápido aperto de mãos, o lutador contra a máfia sai para sua próxima batalha.
Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64312168

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